Após o trágico assassinato de Mãe Bernadete, Maria Bernadete Pacífico, o governo da Bahia está em processo de revisão de todos os protocolos de proteção destinados aos defensores dos direitos humanos. Mãe Bernadete, uma respeitada mãe de santo e líder quilombola, foi brutalmente assassinada em sua residência no Quilombo Pitanga dos Palmares, localizado no município de Simões Filho, Bahia, na última quinta-feira (17).
Felipe Freitas, secretário de Justiça e Direitos Humanos da Bahia, informou que equipes do governo estadual em colaboração com representantes do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania estão trabalhando em conjunto para iniciar discussões com os órgãos de segurança pública. O objetivo é aprimorar os programas de proteção já existentes, a fim de garantir maior eficácia na salvaguarda dos defensores de direitos humanos.
“A morte de uma defensora de direitos humanos é uma tragédia, ainda mais se ela já tenha sido ameaçada. O governo federal e o governo da Bahia estão revisando, obviamente não só na Bahia, como em todo o Brasil, todos os protocolos de proteção. Uma tragédia como essa precisa fazer com que a gente aprimore o programa, aprimore as medidas de proteção, aperfeiçoe as ações de policiamento em todo o país”, disse, neste domingo (20), em entrevista.
De acordo com Freitas, as equipes estão em campo reforçando a segurança dos ativistas da comunidade e da região. Medidas de proteção incluíram a retirada dos familiares de Mãe Bernadete do Quilombo Pitanga dos Palmares.
Em comunicado divulgado no sábado (19), o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania anunciou que na semana seguinte a Coordenação-Geral do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos estará na Bahia para uma série de compromissos voltados para o fortalecimento do programa de proteção no estado. Os representantes do governo federal planejam visitar comunidades ameaçadas e coletar informações visando a reformulação dessa política pública.
Em nível federal, a Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos é responsável pela coordenação entre diversos órgãos e entidades. O programa é implementado por meio de convênios celebrados com governos estaduais, os quais estabelecem parcerias com organizações da sociedade civil.
Na Bahia, a execução do programa estadual está a cargo da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos da Bahia, que conta com uma entidade da sociedade civil para compor a equipe técnica e garantir a prestação de atendimentos necessários.
“O mais importante, nesse momento, é a prioridade nas investigações. Porque o primeiro passo de uma profunda revisão dos programas de proteção passa por encontrar, efetivamente, quem foram os executores de Mãe Bernadete, toda a Polícia Civil está mobilizada. Nossa obrigação é oferecer uma resposta para esse caso e qualificar ainda mais a política de prevenção à violência e de proteção de pessoas que se acham ameaçadas”, disse o secretário Felipe Freitas.
Segurança no quilombo
Atualmente, na Bahia, 94 defensores de direitos humanos, incluindo quilombolas, indígenas e trabalhadores rurais, estão recebendo proteção, enquanto outros 25 casos estão em processo de avaliação.
“O Brasil é um país muito violento. Infelizmente, estados que têm riquezas naturais, ativos minerais importantes, eles são objetos de disputas muito intensas entre o poder econômico e comunidades tradicionais. A Bahia é um dos estados com maior número de comunidades indígenas e comunidades quilombolas e isso certamente faz com que haja, em torno dos direitos territoriais dessas comunidades, uma forte disputa”, explicou.
Um levantamento conduzido pela Rede de Observatórios de Segurança, com colaboração das secretarias de segurança pública estaduais e divulgado em junho deste ano, já havia identificado a Bahia como o segundo estado brasileiro com maior incidência de violência contra povos e comunidades tradicionais. O estado ficou atrás apenas do Pará, tendo registrado 428 casos de violência contra esses grupos no período de 2017 a 2022.
Mãe Bernadete estava sob o programa de proteção desde 2017, quando seu filho, Binho do Quilombo, foi assassinado. Para aumentar sua segurança, foram instaladas câmeras de vigilância em sua residência e a Polícia Militar realizava patrulhas regulares no Quilombo Pitanga dos Palmares. De acordo com Freitas, Mãe Bernadete recebia visitas diárias, muitas vezes mais de uma por dia, em diferentes horários, e tinha acesso direto aos comandantes da região por meio de contato telefônico.
“Além disso, ela foi atendida, em maio, por uma equipe interdisciplinar que fez uma entrevista em profundidade com ela para poder fazer uma atualização das avaliações de risco”, disse o secretário de Justiça e Direitos Humanos, explicando que não houve mudança de cenário que pedisse reforço na segurança de Mãe Bernadete recentemente.
“Em que pese, nas falas que ela fazia, referir-se ao tema da ameaça como um problema permanente nas comunidades e fosse muito enfática na manifestação pelo julgamento dos assassinos do seu filho, ela não relatou para as equipes, nos relatórios que nós temos, nos contatos diários com a polícia, algo específico que pudesse ensejar uma outra medida”, explicou.
Linhas de investigação
Segundo o secretário de Justiça e Direitos Humanos da Bahia, há diversas linhas de investigação em andamento e nenhuma possibilidade foi descartada até o momento. Ele destacou que ainda não se sabe qual atividade específica de Mãe Bernadete pode ter levado ao seu assassinato. Ele explicou que a determinação e a postura combativa dos defensores de direitos humanos frequentemente incomodam “certos interesses econômicos que muitas vezes buscam violar os direitos dessas comunidades”.
A delegada-geral da Polícia Civil, Heloísa Brito, está pessoalmente liderando as equipes responsáveis pela investigação dos responsáveis tanto pela execução quanto pelos mandantes desse crime.
“Não é possível afirmar a qual interesse Mãe Bernadete havia contrariado uma vez que ela era uma pessoa que, na sua posição de defender sua comunidade, podia estar incomodando muitas pessoas e grupos. Desde organizações como grupos ligados ao tráfico de drogas se sentiram, certamente, incomodados com liderança de Mãe Bernadete, grupos econômicos que tinha interesse na exploração do território, os responsáveis pela morte do filho dela também podem estar muito incomodados com a sua militância”, disse Felipe Freitas.
Além disso, há também a suspeita de que o crime tenha motivações ligadas ao racismo religioso. O secretário ressaltou que o racismo, aliado à exploração econômica de grupos que habitam territórios tradicionais, contribui para aumentar a vulnerabilidade dessas lideranças diante de situações de risco. “Seja lá o que tenha sido motivação [para o crime], é inevitável reconhecer que o racismo e a intolerância religiosa e que os conflitos territoriais fazem parte do contexto da vida das comunidades tradicionais”, acrescentou o secretário.
Defensores da democracia
Com um histórico de engajamento no movimento negro e contribuições acadêmicas relacionadas, Felipe Freitas tinha uma relação de mais de 16 anos com Mãe Bernadete. De acordo com ele, tanto o sentimento pessoal quanto o coletivo estão repletos de consternação diante desse crime brutal. A líder quilombola foi morta a tiros no rosto enquanto assistia televisão em sua residência, na companhia de dois netos e outras duas crianças, no espaço que servia de casa e também de terreiro religioso.
“Nós não estamos aqui tratando apenas do nosso dever, da nossa obrigação de servidores públicos de investigar e elucidar a morte de uma cidadã baiana que foi vítima de uma violência brutal. Nós estamos também aqui investigando a morte de uma amiga, de uma pessoa que era aliada nossa, aliada dos nossos interesses comuns no campo dos direitos humano”, disse Freitas, contando que ela integrou conselhos de direitos do governo da Bahia e participou ativamente de iniciativas de programas governamentais.
Além de suas outras atividades, Mãe Bernadete também desempenhava o papel de coordenadora da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) e tinha ocupado o cargo de ex-secretária de Promoção da Igualdade Racial de Simões Filho.
O secretário Felipe Freitas enfatiza que os defensores dos direitos humanos e os ativistas sociais desempenham um papel crucial na manutenção da vida democrática. “Uma pessoa como Mãe Bernadete cumpria um papel importante na vida daquela comunidade, não só porque ela lutava por direito, mas porque ela, na prática, era alguém que lutava por serviços públicos muito práticos, que fazia acolhimento de famílias, que ouvia pessoas, que intermediava o acesso das pessoas aos serviços públicos, que favorecia a entrada do poder público no local. Isso é uma coisa que é fundamental para a vida democrática e é obrigação do Estado brasileiro reforçar, intensificar, qualificar e aprimorar as medidas de proteção de pessoas como ela”, destacou.