Os documentos obtidos demonstram que, desde 2021, o governo federal tinha conhecimento da falta de alimentos enfrentada pelos índios Yanomami, mas mesmo assim não respondeu aos pedidos da Defesa Civil de Roraima para colaborar na assistência às comunidades da Terra Indígena Yanomami, que é de responsabilidade federal.
O coordenador da Defesa Civil de Roraima, coronel Cleudiomar Alves Ferreira, informou à reportagem que o governo estadual solicitou o apoio federal para ajudar a fortalecer a assistência humanitária a comunidades indígenas isoladas pelas chuvas intensas de 2021 e também às comunidades Yanomami. O pedido foi feito em junho de 2021, por meio de ofícios encaminhados aos antigos ministérios da Mulher, Família e Direitos Humanos e Desenvolvimento Regional (MDR), que, na época, eram liderados por Damares Alves e Rogério Marinho.
“O governo estadual pediu o apoio federal para que pudéssemos reforçar a ação humanitária em comunidades indígenas isoladas pelas chuvas intensas de 2021 e também às da área yanomami”
Em documentos, o governo do estado pede ao Poder Executivo federal o envio de 8 mil cestas básicas para complementar as já destinadas a famílias de cidades em situação de emergência devido aos efeitos das chuvas “atípicas” que ocorreram em 2021. No momento da solicitação, nove cidades já tinham reconhecido a emergência (Bonfim, Cantá, Caracaraí, Caroebe, Normandia, Rorainópolis, São João da Baliza, São Luiz do Anauá e Uiramutã).
Veja os ofícios recebidos pelo governo de Roraima:
“Com isso, o Ministério do Desenvolvimento Regional, por intermédio da Secretaria Nacional de Defesa Civil, nos mandou recursos [financeiros] para adquirirmos cestas básicas e alugarmos as aeronaves que usamos para levar mantimentos às comunidades isoladas”, acrescentou Ferreira.
De acordo com o coordenador da Defesa Civil estadual, a meta é obter mais 8 mil cestas básicas para distribuição às comunidades indígenas em diversas localidades, incluindo as da terra yanomami, onde vivem aproximadamente 40 mil índios da etnia em uma área de acesso limitado. Para atender aos indígenas “afetados pela crise humanitária”, o governo estadual solicitou o suporte logístico das Forças Armadas.
“O ministério [da Mulher, Família e dos Direitos Humanos] respondeu que não tinha como nos ajudar. Informou que tinha direcionado nossos pedidos ao Ministério da Defesa, à Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas, então vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública] e a outros órgãos. Depois, nos disse que a fundação indígena atenderia aos índios isolados de todo o estado [incluindo os yanomami], distribuindo cerca de 70 mil cestas de alimentos a pouco mais de 11,6 mil famílias. Não sei dizer o que aconteceu depois, mas avalio que se tivéssemos recebido o apoio solicitado, se a ajuda humanitária tivesse chegado em caráter emergencial, teríamos conseguido atender também aos yanomami, o que não conseguimos fazer devido, principalmente, à falta de apoio logístico [de transporte]”, resumiu o coordenador da Defesa Civil estadual.
Garimpos
Conforme documentos aos quais a Agência Brasil teve acesso e disponíveis na íntegra nesta matéria, o governo de Roraima e o Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos mencionam a “crise humanitária” enfrentada pelas comunidades indígenas em geral e a “falta de alimentação e desnutrição infantil entre os yanomami” já em 2021. Esses problemas são apontados como resultantes da alta pluviometria, ou seja, as intensas chuvas que atingiram o estado naquele ano.
Organizações indígenas e instituições públicas, como o Ministério Público Federal (MPF), há muito tempo alertam para a crise humanitária no território yanomami, argumentando que tanto os efeitos das chuvas quanto os da pandemia da covid-19 foram agravados pela presença ilegal de cerca de 40 mil garimpeiros na maior terra indígena do país, que possui quase 9,6 milhões de hectares. Cada hectare equivale a aproximadamente um campo de futebol oficial.
A Hutukara Associação Yanomami afirma que a destruição florestal causada por garimpeiros no interior da reserva yanomami tem aumentado de forma alarmante, saltando de 1.236 hectares destruídos em 2018 para 5.053 hectares em dezembro de 2022, desestabilizando a forma de vida indígena.
Já o Instituto Socioambiental (ISA), uma ONG, acredita que a crise humanitária enfrentada pelos yanomami, que tem efeitos sanitários, ambientais, socioculturais e econômicos, é também resultado da desestruturação da assistência de saúde indígena nos últimos cinco anos. De acordo com a gestão federal atual, pelo menos 570 crianças yanomami morreram devido a causas evitáveis nos últimos quatro anos.
“É inequívoca a associação entre a devastação que a mineração ilegal provoca e a propagação da malária, facilitada pela multiplicação de invasores e pelas crateras com água parada, fruto da atividade e propícias à proliferação de mosquitos transmissores da enfermidade”, destaca o ISA.
Difamação
A senadora Damares Alves, anteriormente ministra da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, declarou à reportagem que a pasta agiu de acordo com sua responsabilidade ao solicitar apoio das instituições governamentais federais responsáveis por atender à solicitação do governo estadual.
“Foram enviados inúmeros ofícios aos demais ministérios e as respostas recebidas foram positivas quanto ao atendimento das demandas. Órgãos como Sesai [Secretaria Especial de Saúde Indígena] e Funai informaram ter distribuído cestas básicas e realizado ações emergenciais de atendimento aos indígenas”, sustenta a senadora na nota enviada por sua assessoria.
A equipe de reportagem tentou estabelecer contato com a Fundação Nacional do Índio (Funai) na segunda-feira (30), mas, até o momento, não obteve resposta sobre o que ocorreu durante a gestão anterior.
“Nenhuma campanha difamatória, como a que tem sido realizada desde o último mês, irá apagar todo o trabalho feito por toda uma vida pela senadora em favor dos povos indígenas. Damares Alves é, efetivamente, uma indigenista. E vai continuar trabalhando e dedicando seu mandato para que todos eles tenham direito a uma vida digna e plena”, acrescentou a senadora, que já tinha usado as redes sociais para assegurar que o governo Bolsonaro distribuiu as cestas básicas necessárias diretamente aos yanomami.
Em uma declaração, o governo de Roraima confirmou que, após as intensas chuvas de 2021, percebeu a urgência de ajuda federal para ajudar as comunidades afetadas e atribuiu a situação atual dos yanomami à “falta de suporte por parte do governo federal”.
“Sempre estive muito atento aos problemas do estado e sei da fragilidade que temos por ser uma unidade federativa pequena e ainda muito dependente dos recursos vindos do governo federal. Por esse motivo, é regra em nosso governo a atenção a tudo, o pedido de auxílio quando necessário, o atendimento de todos os pedidos dentro das nossas possibilidades e a coerência com as nossas ações”, afirmou o governador Antonio Denarium em resposta enviada pela Secretaria Estadual de Comunicação na qual detalha uma série de ações desenvolvidas nos últimos anos.
Leia aqui a nota na íntegra
“No caso específico dos povos indígenas, o governo estadual sempre buscou atuar com alternativas de inclusão nas etnias onde essa inclusão era permitida, mas dentro dos limites, respeito a cultura e aos hábitos de cada povo”, acrescenta o governo roraimense, destacando que no caso da saúde, o atendimento inicial é de responsabilidade da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), subordinada ao Ministério da Saúde, e, mesmo assim, em quatro anos, 27.650 indígenas foram atendidos em um dos cinco hospitais públicos da capital, Boa Vista.
O governador Denarium respondeu às críticas recebidas recentemente. Segundo o jornal Folha de S. Paulo, ele negou a gravidade da crise sanitária apresentada nas imagens de yanomamis subnutridos com sinal de verminoses e unidades de saúde lotadas. Estas imagens mobilizaram a opinião pública e resultaram na declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional pelo governo federal para lidar com a crise sanitária e humanitária.
“Com relação às críticas feitas em veículos nacionais, o governador se diz tranquilo, pois acredita que muita coisa foi tirada de contexto. Esquecem que essa desassistência por parte do governo federal é que causou essa situação dos povos yanomami”, aponta Denarium na nota enviada à Agência Brasil. “Reafirmo ser contrário ao garimpo em área indígena e que não quero ver indígenas ou não [indígenas] vivendo e passando por privações. Principalmente, não quero soluções paliativas como as feitas até hoje. Precisamos, juntos, unidos, governo do estado e governo federal, dar soluções definitivas para todo e qualquer problema que aflige a nossa gente, sejam eles indígenas ou não”.