O novo arcabouço fiscal, apresentado pelo governo como uma ferramenta para estabilizar as contas públicas no médio prazo, é ancorado na limitação do crescimento das despesas a 70% da variação da receita dos 12 meses anteriores. Embora bem recebido por parte do mercado financeiro, alguns economistas ainda têm dúvidas sobre a eficácia das novas regras. Entre as principais preocupações, estão o aumento da arrecadação necessária para que o país possa sair de um déficit primário de 1% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2021 para um superávit de 1% do PIB em 2026, bem como a capacidade do novo arcabouço fiscal de ser anticíclico e amortecer impactos de choques econômicos.
A diretora da Instituição Fiscal Independente (IFI), Vilma Pinto, e o analista da IFI, Alexandre de Andrade, destacaram que o texto do projeto de lei ainda precisa ser conhecido e que a geração de superávits primários está condicionada ao crescimento da receita, sem buscar alterar o atual nível de gastos. Eles alertam que esse mecanismo pode incentivar a busca por mais receitas não recorrentes, que podem melhorar a situação de curto prazo, mas que não garantem uma trajetória sustentável para o primário e a dívida.
Por outro lado, a economista e professora de MBA da FGV, Carla Beni, elogia o novo arcabouço fiscal e considera que as análises sobre a dependência do marco em relação à geração de receitas são apressadas. “O arcabouço, como carta de intenções, foi bem elaborado. Tem uma característica muito importante, que é a flexibilidade, porque a economia é muito dinâmica. Então, quanto mais flexível, mais longevo passa a ser. E achei audacioso, no sentido de que pretende fazer uma redução muito grande do nosso déficit fiscal”, avalia.
Para que o novo arcabouço fiscal seja bem-sucedido, a professora de MBA da FGV Carla Beni acredita que serão necessárias ações adicionais do governo para estabilizar a dívida pública. Entre as medidas citadas por ela estão a revisão dos gastos públicos para definir o que é mais eficiente, a definição de prioridades no futuro Plano Plurianual (PPA) que será enviado pelo Ministério do Planejamento em agosto e a realização de reformas tributárias que incluam a cobrança de impostos sobre dividendos e patrimônio, a revisão de incentivos fiscais e a tributação de novos setores, como as apostas esportivas. Na ocasião em que apresentou o novo arcabouço fiscal, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou que o governo planeja divulgar nesta semana novas medidas para reforçar a arrecadação em R$ 150 bilhões, sem aumentar alíquotas ou criar impostos.
Ciclos econômicos
Dúvidas cercam o alinhamento do novo arcabouço fiscal aos ciclos econômicos, já que o limite de crescimento de 70% nos gastos federais está atrelado à receita e tem um caráter pró-cíclico. Isso significa que os gastos aumentam quando a arrecadação cresce e diminuem quando ela cai, seguindo um modelo semelhante ao do superávit primário. Embora essa regra economize mais em momentos de crescimento econômico e poupe menos em momentos de recessão, os gastos aumentam e diminuem na mesma direção. No entanto, a regra inclui um mecanismo anticíclico, que só se aplica dentro de uma faixa específica. Essa faixa permite que os gastos reais aumentem 0,6% ao ano em casos de baixo crescimento econômico e 2,5% ao ano em casos de expansão significativa do PIB. Portanto, em momentos de recessão, o gasto não diminui, mas continua a crescer no limite mínimo de 0,6% acima da inflação.
O economista e sociólogo Marcelo Medeiros, especialista em desigualdade social e pesquisador do Ipea e da UnB, argumenta que o novo arcabouço não é anticíclico na prática. Ele afirma que uma regra fiscal ideal deve ter mecanismos para expandir a rede de proteção social em caso de necessidade, especialmente em momentos de recessão. Durante a última grande recessão, o Bolsa Família encolheu em vez de se expandir, pois estava sujeito a uma regra pró-cíclica.
Investimentos
Eduardo Costa Pinto, economista e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), expressa críticas à capacidade do novo arcabouço fiscal de estimular os investimentos, mesmo com a definição de um piso para os gastos. “Quais seriam os motores para puxar a economia nesse momento de desaceleração, como o PIB já mostrou? Ou o gasto do governo, ou o investimento público? É evidente que a nova regra é melhor do que o teto dos gastos, dá um grau de flexibilidade, mas não acho que teremos uma força, uma tração, para que a regra permita ampliação dos gastos e do investimento público para puxar a economia brasileira”, diz.
Vilma Pinto e Alexandre de Andrade, analistas da IFI, argumentam que o estabelecimento de um limite mínimo de investimento em torno de R$ 75 bilhões, que será corrigido pela inflação anualmente, tornará o Orçamento ainda mais rígido, obrigando o governo a cortar em outras áreas, inclusive em gastos obrigatórios. “Em que pese a boa intenção de se preservarem os investimentos, a regra aumenta ainda mais o grau de rigidez orçamentária da União”, escreveram os dois no blog da FGV.
Respostas
Durante a explicação do novo arcabouço fiscal na última quinta-feira (30), o secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, Guilherme Mello, afirmou que uma eventual queda na receita pode atrasar a estabilização da dívida pública. Contudo, o secretário destacou que os gastos devem crescer menos que a receita em praticamente todos os cenários, com exceção de uma possível recessão que resulte em queda na arrecadação.
“A pergunta recorrente que vocês vão fazer é: ‘E se a receita não vier?’ O que a gente já reiterou é que, independentemente do comportamento da receita, a despesa vai crescer menos que a receita. Obviamente que, quanto mais rápido conseguirmos recuperar as bases de financiamento, mais rapidamente vamos conquistar os resultados primários necessários para estabilizar a dívida [pública]. Este é o objetivo de todos, e também entendo que seja o objetivo dos parlamentares com quem o ministro tem conversado”, rebateu Mello.
De acordo com as declarações do secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, o limite mínimo de crescimento real das despesas em momentos de baixo crescimento econômico é estabelecido em 0,6% acima da inflação. Esse valor foi determinado levando em consideração a taxa média de crescimento da população. “Com essa taxa, podemos assegurar que os gastos per capita estão mantidos em momentos de recessão. Ninguém vai deixar de ter acesso a programas sociais básicos em momentos de crise, como aconteceu com o Farmácia Popular recentemente”, justificou.
O ministro Haddad reforçou durante o anúncio das medidas que os percentuais de 0,6% e 2,5% de crescimento são adequados para tornar o novo arcabouço fiscal anticíclico. Ele explicou que o limite mínimo de 0,6% foi estabelecido para evitar que o governo precise solicitar ao Congresso a alteração das regras fiscais em situações de novas recessões, como ocorreu nos últimos anos.
“Se houver uma retração na parte baixa do ciclo [recessão], decidimos incorporar aquilo que era exceção dentro do teto de gastos à regra nova, para trazer as excepcionalidades, exceto aquelas fixadas pela Constituição [como estados de calamidade pública], para dentro da regra aquilo que é uma espécie de crescimento vegetativo em função daquilo que se verificou desde a promulgação do teto de gastos”, disse.