Apesar de ser um importante produtor de alimentos, o Brasil ainda enfrenta altos índices de insegurança alimentar no campo, afetando diretamente os próprios produtores. De acordo com a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan), seis em cada dez moradores de áreas rurais apresentam algum grau de insegurança alimentar, sendo que 18,6% estão em situação de insegurança alimentar grave e passam fome. Já nas áreas urbanas, os percentuais são um pouco menores, mas ainda alarmantes.
Segundo o mesmo estudo, 57,8% da população urbana é afetada por insegurança alimentar e 15% enfrentam a fome. Um relatório do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de 2022 revelou que a situação vem piorando nos últimos anos, com o índice de famílias em situação de insegurança alimentar no campo subindo de 35,3% em 2013 para 46,4% em 2018, de acordo com a Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) 2017-2018 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“Isso significa fome”, explicou o pesquisador do Ipea Alexandre Arbex Valadares, em nota, à época.
“Os dados da POF-2018 surpreenderam porque, nas pesquisas anteriores, os indicadores apontavam uma tendência de superação da insegurança alimentar no país, trajetória que mudou sensivelmente em 2018”, completou.
Além da insegurança alimentar, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) constatou que a renda das famílias rurais no Brasil vem sofrendo uma queda significativa. De acordo com um relatório divulgado em 2022, entre 2008 e 2018, houve uma queda de 5,3% na renda média das famílias rurais brasileiras. Esse empobrecimento da população do campo tem sido um fator agravante para a insegurança alimentar e outros problemas sociais enfrentados pelos moradores das áreas rurais.
Famílias
Daiane e Gabriela são duas irmãs que vivem com sete crianças e adolescentes entre 2 e 15 anos na zona rural de Guapimirim, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Elas moram em uma casa humilde de alvenaria, com parte do acabamento emboçado e parte com tijolo aparente. Apesar de receberem o Bolsa Família, que evita que elas passem fome, o dinheiro é curto e muitas vezes não é suficiente para garantir comida durante todo o mês. Essa é a única fonte de renda das irmãs, o que evidencia a dificuldade enfrentada por muitas famílias na zona rural do país.
“A gente recebe [o Bolsa Família] e consegue abastecer o armário. Mas, no fim do mês, é difícil. A gente fica sempre preocupado se vai faltar comida. Mas tem algumas pessoas que ajudam a gente”, conta Daiane, que está treinando para poder trabalhar como cuidadora e melhorar a renda da família.
Além da queda na renda das famílias rurais, a pesquisa também constatou que houve menos dinheiro disponível para a compra de comida em comparação com dez anos antes. Segundo o Ipea, os gastos dessas pessoas com alimentos caíram 14% nesse período.
Um exemplo dessas dificuldades é a realidade de Maria e Everaldo, que vivem com os três filhos em São José da Tapera, na caatinga alagoana. Eles residem em uma casa precária feita com estacas de madeira, de apenas dois cômodos, em que um é utilizado como dormitório para as crianças e o outro como quarto para o casal, banheiro e cozinha. Os alimentos e a água são armazenados em dois tambores de plástico. Everaldo não consegue trabalhar na terra devido a um problema na coluna, e a renda de R$ 600 proveniente do Bolsa Família não é suficiente para garantir uma alimentação adequada a todos. A família faz apenas duas refeições por dia, com a necessidade de controlar rigorosamente a quantidade de comida para que ela não acabe antes do fim do mês. “São R$ 600 pra tudo. E o Everaldo ainda toma remédios controlados. Não tem como comer mais do que duas vezes por dia. É complicado”, conta Maria.
Concentração de terra
Segundo o pesquisador da Universidade de Brasília (UnB) Sérgio Sauer, a fome no campo é resultado da “profunda desigualdade socioeconômica” que afeta a sociedade brasileira. Na zona rural, isso se materializa na concentração de terra que faz com que muitos moradores do campo não tenham acesso a um local para cultivar.
“Além da desigualdade estrutural, proporcionalmente, há mais gente com fome no campo devido a problemas históricos na formulação e implementação de políticas governamentais ou estatais. Historicamente, inclusive com as políticas públicas socioassistenciais, houve uma concentração de investimentos nas cidades”, explica Sauer.
A fome não poupa nem os próprios produtores de alimentos. A pesquisa da Penssan mostrou que a fome atingia 21,8% de agricultores familiares e produtores rurais no país. A insegurança alimentar, em todos seus graus, afetava 69,7% dessas pessoas.
No Norte do país, a insegurança alimentar atinge 79,9% dos produtores rurais/agricultores familiares. Quatro em dez dessas pessoas (40,2%) passam fome. No Nordeste, 83,6% enfrentam insegurança alimentar em algum grau e 22,6% encaram a fome.
“Do ponto de vista ético e de direitos humanos, é inadmissível que o espaço produtor de alimentos abrigue pessoas passando fome. Essa contradição é o elemento – político, ético, humano – que torna a fome no campo tão marcante, inclusive porque não é possível justificá-la com argumentos equivocados como, por exemplo, ‘há fome porque faltam alimentos’”, destaca o pesquisador.
Sauer afirma que, nos últimos anos, houve um desmantelamento de políticas públicas voltadas para a população do campo, o que, junto com a pandemia de covid-19, fez com que a situação piorasse.
“O crescimento da fome no campo, inclusive entre produtores de alimentos, se deve aos cortes orçamentários, quando não à extinção de políticas públicas, desenhadas para atender à população do campo. A fome aumentou, portanto, devido aos cortes nos investimentos e ao desmantelamento de políticas depois de 2016, particularmente depois de 2018.”
Entre as políticas desmanteladas nos últimos anos, segundo Débora Nunes, da coordenação do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST), estão o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que incentiva a compra de alimentos produzidos por agricultores familiares, e o acesso ao crédito para pequenos produtores rurais.
“A gente imagina que, quem está no campo, teria melhores condições de produzir o alimento. Por isso, é importante a gente relacionar a fome à garantia de políticas públicas que contribuem, para quem está no campo, produzir o alimento, com acesso ao crédito, à política da reforma agrária, a políticas públicas como o PAA, como PNAE [Programa Nacional de Alimentação Escolar], que ajudam no fortalecimento da produção e, consequentemente, fazem com que as famílias tenham melhores condições de existência”, afirma Débora.
Segundo ela, a fome no Brasil também tem relação direta com o modelo agrícola adotado no país, que privilegia a exportação de commodities, como a soja, em vez da produção de alimentos para os brasileiros.
“O modelo do agronegócio exige a concentração da terra, não gera emprego e não produz alimentos, não produz comida, produz commodities para exportação. E é um modelo que destrói o meio ambiente, com o uso intensivo de agrotóxicos, o envenenamento do nosso lençol freático e a destruição das nossas matas.”
“O outro modelo é o da agricultura familiar, da reforma agrária, que justamente propõe o inverso, partindo da democratização do acesso à terra. É um modelo que compreende que, para sua existência, precisa ter uma relação saudável com o meio ambiente. Só consigo ter água na minha cacimba, se preservamos o ambiente”, completa.
Para Sergio Sauer, combater a fome no campo exige “medidas estruturantes”, com políticas de Estado que independam do governo da ocasião e que permitam o acesso da população à terra para produzir.
“As experiências históricas de acesso à terra (criação de projetos de assentamentos) ou garantia de permanência na terra (reconhecimento de direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais e povos indígenas) demonstram claramente a diminuição da fome e melhorias nas condições de vida no campo”, ressalta.
“Esses programas são, ou deveriam ser, acompanhados de outras políticas públicas (assistência técnica, crédito, construção de infraestrutura, acesso à saúde, acesso à educação, etc), que resultam diretamente na produção de alimentos, consequentemente na diminuição da fome e na melhoria da vida no campo”, conclui Sauer.
Governo
Segundo a secretária nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, Lilian Rahal, historicamente “a pobreza é mais dura” na zona rural e lembra que essas áreas englobam populações tradicionais que são muito afetadas pela desnutrição.
“Ela é mais dura porque você considera comunidades indígenas, reservas extrativistas e populações quilombolas onde os indicadores de desnutrição, geralmente, têm sido maiores. E mesmo nos últimos anos foram os núcleos duros da desnutrição. É onde a gente tem que fazer nossas políticas chegarem. É claro que esse núcleo duro se ampliou nas áreas rurais e cresceu muito nos últimos anos. Isso se reverte enxergando primeiro essas populações, buscando onde estão e criando políticas públicas específicas, desde políticas de saúde até as políticas sociais”, afirma.
De acordo com a secretária, o governo quer reforçar o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), com a recuperação do orçamento e uma reformulação com foco nas famílias mais vulneráveis.
“Nossa ideia é focar o PAA cada vez mais nas famílias do Cadastro Único, nas mulheres e famílias, para a compra de alimentos. Nos últimos anos, o programa deixou de ser operado com as organizações da agricultura familiar. Houve uma concentração de operações nas prefeituras e produtores de pessoas físicas. Nossa ideia é, de alguma forma, retomar a atuação com as organizações da agricultura familiar até para poder fortalecer o modelo associativo.”
A secretária destacou que, apesar disso, o PAA continuará atuando com os entes federativos. Ela ressaltou também a importância de ter programas que fomentam a inclusão das famílias do campo no setor produtivo, seja pela própria agricultura seja por outras atividades empreendedoras.
“A gente tem que enxergar essas famílias, saber as carências e organizar uma oferta de políticas públicas para que a situação possa ser revertida no curto prazo. Isso passa pela transferência de renda, mas, às vezes, pela própria oferta de comida. Programas que comprem a comida que elas produzem, mas também façam a comida chegar onde não está chegando”, afirma.
Ela destacou também a importância de garantir o acesso à água. “A insegurança hídrica potencializa a insegurança alimentar. Tem programas que nos permitem reduzir isso de forma bastante concentrada, como o programa de cisternas no semiárido. Nossa proposta é chegar onde não chegamos. Já tem mais de 1 milhão de cisternas implementadas, mas ainda tem cerca de 300 mil a 350 mil famílias que precisam receber cisternas.”