“Nosso destino é ser onça”
SINOPSE
Incontáveis são as histórias que narram a origem do mundo. Criação, destruição, recriação – eterno retorno. Aqui, falaremos do “eterno devir”. Imortalidade e futuro! Nos rastros, pelas trilhas de Alberto Mussa, o mito Tupinambá restaurado é um mosaico de cosmovisões de nações indígenas que habitavam (e habitam) o Brasil há milhares de anos. O próprio autor afirma, no início de “Meu destino é ser onça”:
Há pelo menos 11 mil anos – data bem antiga para a América do Sul – a Amazônia brasileira passou a ter ocupação humana. (…) Há muitos indícios de que os povos da floresta influenciaram profundamente a vida de outras populações ameríndias, estendendo sua penetração intelectual até os Andes, antes que surgissem as ‘evoluídas’ civilizações andinas. Numa época ainda muito difícil de identificar, por razões ainda também ignoradas, um desses povos abandonou sua região nativa para iniciar um dos maiores processos migratórios das Américas. Falo dos tupi-guarani. (…) Não é difícil imaginar que tomaram o sentido norte-sul, em direção às bacias do Paraguai e do Paraná, alcançando mais tarde o litoral sul do Brasil, para voltar a se expandir no sentido sul-norte, até o Ceará – sempre fugindo do cerrado e preferindo as matas mais fechadas.”
Ocupando posição central nas narrativas míticas dos povos tão complexos que desenharam os contornos do litoral do Brasil e se conectavam tanto ao coração da Amazônia quanto às demais sociedades ameríndias do que hoje se entende por latinoamérica, eis o signo deste enredo: a onça. Metáfora viva dos rituais antropofágicos, é a onça uma chave para que sejam pensadas as disputas identitárias brasileiras e a nossa eterna capacidade de devorar para recriar – e renascer, rebrotar, revidar, deglutir. Insurgência e potência! Mais do que o animal em si, o bicho, a ideia de “devoração” – jaguara. O ser divino, sagrado, que ergueu reinos, em nosso imaginário. Bordou de força e bravura as narrativas de matriz oral dos povos originários, as lendas costuradas em folguedos e canções, os cordéis do motor Armorial, o próprio carnaval do Rio de Janeiro, em algumas de suas melhores apresentações. Hoje, expressa as lutas de muitas gentes – e, com os dentes e as garras à mostra, há de expressar, também, a vitória da Grande Rio!
Ao final da narração do mito, Beto Mussa entoa:
“Quando, no fim das chuvas, aparece uma estrela muito vermelha, chamada Jaguar, é Sumé transformado em onça (…). E os homens batem no chão com seus cajados e, para assustar a onça, gritam eicobé xeramói! eicobé xeramói güé! – “viva, meu avô.”
E Jaci, então, se regenera – porque é um grande caraíba.
Os covardes choram, porque sabem que se o mundo acabar a angüera deles será devorada por anhanga.Os covardes choram, porque sabem que se o mundo acabar a angüera deles será devorada por anhanga.
Mas nós, que somos fortes, não tememos.”
Que venha um samba valente, de teor lendário, com força e encantamento, voz aguerrida – devo(ra)ção que se faz folia, nossa eterna brincadeira!
Texto explicativo do enredo (“sinopse”):
NOSSO DESTINO É SER ONÇA
Tu me convoca e eu venho em todas as pelagens, venho na pelagem de estrela, Suaçurana, eu venho.
Venho na pelagem de onça-pintada, na pelagem de onça-branca, na pelagem de onça-parda,
na pelagem de onça-preta. Venho, Jaguaretê, eu venho. Acanjaruna, eu venho. Ianovare, eu venho. Jaguapinima, eu venho. Ñanguarichã, eu venho.
Nigucié-do-senjo, eu venho. Pacová-Sororoca, eu venho.
Mingoê-do-sengue, eu venho. Jagoareté-apiaba, eu venho. Onça Tigre, eu venho.
Canguçuzinho-do-campo, eu venho. Maracajá, eu venho. Jagoacucu, eu venho.
Jaguatyrica, eu venho. Jaguapitangussu, eu venho. Iaguar, iauaretê, eu venho. Tipai uu, eu venho.
Venho e te dou o que é teu por direito, tua roupa de onça.
Micheliny Verunschk – “O som do rugido da onça”
1. O primeiro rugido do mundo
Rugem, enfim, os tambores!
Assim contou o valente tupinambá: no princípio, a escuridão pintava os talvezes – asas de morcegos ancestrais, sombras de corujas primitivas. Caos. Quem reinava, envolto em mistério, era o Velho, aquele que segurava um cajado e caminhava, solitário, sobre o céu. Sábio. Bebeu o néctar no bico de um colibri. O Velho criou os homens e era adorado por eles, mas aos poucos percebeu a terrível ingratidão: desiludido com a própria criação, destruiu o que havia esboçado em uma chuva devastadora de fogo. Para apagar o fogo, criou o trovão, Tupã, que orquestrou um aguaceiro. Depois do fogo e da água, o mundo adquiriu cicatrizes – mares, grotas, cordilheiras. Nesse tempo, onde tudo era noite, a humanidade renasceu. Povoando a terra-sem-mal, os descendentes da primeira mulher e do único sobrevivente do dilúvio, o primeiro dos sábios pajés, cresceram e se multiplicaram. E aprenderam com Maíra a dominar o fogo – herói civilizador. E aprenderam com a vida a respeitar a onça: espírito maior, sonho e constelonções.
2. A terceira humanidade
Mas não há criação sem conflito e toda saga tem sua disputa: o avesso de Maíra, Sumé, detinha muitos poderes – entre eles, o de se transformar em onça. Um não existia sem o outro. Os filhos de ambos correram matas, enfrentando assombrações! Poxi, parente de Maíra, foi morar no céu e virou Cuaraci, senhor do cocar de fogo – a origem do Sol, que iluminou as trevas. Jaci, um dos filhos do enigmático Andejo, virou a Lua, depois de derrotar uma aldeia de jaguares, parentes de Sumé. Maíra e Sumé, opostos complementares, são os pais do trabalho e da guerra. Um novo dilúvio consumiu o mundo, postas as desavenças. Brotou, então, a terceira humanidade! Maíra, transmutado em curumim, reensinou o homem a cultivar o solo – da luta diária pela comida. Sumé, destemido caraíba, saltou oceanos e sangrou o firmamento, misturando-se ao Sete-Estrelo. Ruge, voraz, no céu, perseguindo eternamente a Lua, a fim de vingar seus parentes. Por isso é preciso comer o inimigo: devorar é tornar-se outro. Vingonça. Vingar é sobreviver. Incisões no couro terrestre. Devorar é seguir adiante.
3. As visões dos homens-onças
Fumaça e cuias sagradas, xuatês e maracás. Visões trançadas em palhas ou incrustadas de jade. Os rios, veias deste imenso corpo, levam e tragam memórias. Tudo, enfim, religado – bocas de onças-carrancas, navegando… gargantas! Nas brasas do xamanismo, o jaguar era cultuado em altares e cachimbos. Incas, maias e astecas ergueram templos ao seu louvor, coração-caverna, girar celeste. Pelos vales espoliados, os povos originários perpetuavam narrativas de onças e homens em transe: a ganância e a ignorância do invasor não conseguiam traduzir o que ensinavam os pajés. Tentativa em vão, o apagar das pegadas. Os ritos permanecem vivos nos cantos e mitos dos povos Araweté, Asurini, Kamayurá, Parakanã, Wari’, Guajajara, Juruna, Xipaia, Mawé, Bororo, Apinajé, Kayapó, Ofayé, Pankararu, Baniwa, Apalai, Yawalapiti, Pataxó, Arara, Bacaeri, Tukano, Guarani Kaiowá, entre outros, tantos, bravos!, cada um com a sua cosmovisão e os seus pensamentos mágicos. Urucum e jenipapo. “Onça sabe quem mecê é”: no Brasil, terra indígena, bulha é pintura e máscara. Onça Grande é mãe e pai.
4. Pintas, pontos e ponteios: reinados
O tempo que pinta as pedras retorce os mitos em causos, tramas a pé celebradas, vivas feito cachoeiras. Onças se fazem memórias e viram histórias sortidas, cordelista e pescador, atravessando tudo, na gira, no cruzo, palavra (en)cantada: ponto de caboclo, ponta de flecha, ponta de dente, ponteio caipira. Encantarias! Tudo se funde e confunde nas troças do versador. Vem onça-maneta, onça-cabocla, onça-da-mão-torta, onça-pé-de-boi, onça-de-bode, onça-borges, onça-mijadeira. Onceiro vira onça e se apaixona, na sanha rosiana do sertão. O escudo do manto do Rapaz-do-Cavalo-Branco! Caetana, Castanha, Onça-Loba que amamentou o herdeiro do trono do Sol, o Quinto Império da Pedra do Reino. Onças aladas, colares de cobra coral. Não as onças sacrificadas dos romances de cavaleiros, mas onças que rasgam o peito dos ditos assinalados. O Circo da Onça Malhada, na rua: onça que ensina e cura, transfigura, onças que somos nós!
5. O nosso destino é ser onça
Quem não brincou de onça-pintada, ao som e ao sabor das toadas? Quem não foi tupinicopolitano, naquele amanhecer rugindo? E quem não se deixou morder pela prosa dentada, indócil, duma Rosa antropofágica? A folia é antena e recado e fareja o que está na trilha. Os destemores, as alegrias. Reantropofagias. Bafio de fera! Hoje, artistas recriam a Terra e fazem da onça o estandarte. Lambe, demarcação: símbolo do que virá, para devorar as ignorâncias. Vencendo demandas! Recontando a história, bafejando saberes. Onças-entidades que arranham as lisuras do presente. Contra a colonialidade que aprisiona, na jugular do atraso. Em defesa dum futuro ancestral, múltiplo e diverso. Pajé-Onça que hackeia, brabo, a história da arte: denuncia o roubo e celebra a liberdade! Para que a floresta brote do asfalto e do vidro e aço e ferro e fuligem – as novas incisões, Felinas. Para que o “ser selvagem” seja redesenhado, no samba que acende a alma. Onças travestis guerreiras, panteronas, onças que redefinem os mantos tupinambás, onças que devoram a morte e fulguram feito estrelas. Onças da diferonça! Nos seixos da eternidade.
Eclipse!
Batemos os cajados no solo para adiar o fim do mundo. (R)Evolução.
Enquanto ela, a Onça, não comer a Lua.
Abrindo os caminhos
sem medo do tombo.
Nasci do encontro de luta entre
a aldeia e o quilombo.
Oxóssi Karajá – “Sete Flechas”
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Narrativa em devoração e desdobramento de “Meu destino é ser onça”, de Alberto Mussa
Enredo, pesquisa e texto: Gabriel Haddad e Leonardo Bora – carnavalescos