O Duque de Caxias, Luís Alves de Lima e Silva, é uma figura que gera interpretações divergentes em relação ao seu legado. Enquanto é enaltecido como um pacificador e militar corajoso, com reconhecimento até mesmo por seus oponentes, há críticas substanciais que apontam para ações controversas ligadas ao genocídio e racismo.
O Exército brasileiro o considera patrono, destacando seus feitos heróicos e sua habilidade diplomática em momentos críticos. No entanto, grupos como o Coletivo de Historiadores Negros Teresa de Benguela e o projeto Galeria de Racistas levantam pontos que confrontam essa narrativa. Eles destacam a liderança de Caxias em repressões militares que resultaram na morte de milhares de pessoas, especialmente entre a população pobre, negra e mestiça.
A controvérsia em torno de Caxias é evidente nas diferentes maneiras como sua figura é celebrada pelo país, com estátuas e monumentos em várias cidades brasileiras. Seu papel na história é complexo e reflete as tensões entre sua reputação como líder militar e as alegações de violência e racismo associados a certos aspectos de sua carreira.
Em última análise, a avaliação do legado de Caxias ilustra como a história muitas vezes é interpretada de maneira diversa, com diferentes grupos colocando em destaque aspectos variados de sua vida e atuação, refletindo a pluralidade de perspectivas e valores presentes na sociedade.
Durante muito tempo, a narrativa que exaltava as realizações e a personalidade de Caxias dominou a sociedade. Atualmente, essa visão é mais prevalente nas instituições militares. Entre os historiadores, há um acordo de que para obter uma compreensão mais completa da trajetória do militar, é necessário primeiro desconstruir o culto que foi construído em torno dele na primeira metade do século 20. Caxias não foi sempre considerado o modelo ideal de soldado patriótico.
Construindo o mito
De acordo com um artigo do pesquisador Celso Castro, vinculado à Fundação Getulio Vargas, a partir da Proclamação da República em 1889, o Exército Brasileiro enfrentava um período de instabilidade interna caracterizado por profundas divisões entre seus membros. Estas divisões abarcavam questões de natureza doutrinária, organizacional e política.
Internamente, um projeto ganhou relevância e defendia a necessidade de forjar uma nova identidade institucional e símbolos distintos para unificar o Exército. Nesse contexto, a escolha de um patrono e um modelo de soldado passou a ser crucial. Até então, o general Manuel Luís Osório era a principal figura heróica das forças militares brasileiras, e a celebração mais importante ocorria em 24 de maio, marcando a Batalha de Tuiuti durante a Guerra do Paraguai, conhecida como “O Dia do Exército” ou “A Festa do Exército”.
Nas décadas iniciais do século 20, o nome de Caxias foi considerado mais alinhado aos novos objetivos militares e políticos da época. Em 1923, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) propôs oficialmente a celebração do Duque de Caxias, uma proposta apoiada pelo ministro do Exército no mesmo ano. Assim, a “Festa de Caxias” foi formalmente incorporada ao calendário militar. Em 1925, um aviso ministerial estabeleceu oficialmente o dia de nascimento de Caxias como o “Dia do Soldado” em todo o país, uma data que permanece celebrada nos dias atuais.
Durante a década de 1930, especialmente durante a era do Estado Novo (1937-1945) no Brasil, o período de fechamento político do país coincidiu com uma narrativa militar que utilizava Caxias como um símbolo de autoridade, disciplina e coesão, valores que eram de grande interesse para os líderes das Forças Armadas e para o próprio Estado brasileiro.
Em 1935, o Forte do Vigia, localizado no Leme, zona sul do Rio de Janeiro, passou por uma mudança de nome, tornando-se o atual Forte Duque de Caxias. Contudo, o ponto mais marcante desse movimento ocorreu em 1949, quando o edifício que abrigava o Ministério da Guerra e estava localizado na Avenida Presidente Vargas, centro do Rio, foi rebatizado como Palácio Duque de Caxias. Uma estátua do militar, que anteriormente ocupava o Largo do Machado, foi realocada para a fachada do prédio. Adicionalmente, um panteão foi construído na região para abrigar os restos mortais de Caxias, de sua esposa e de seu filho, os quais foram transladados do cemitério São João Batista.
Esses eventos refletem como a figura de Caxias foi instrumentalizada para promover uma narrativa de coesão e liderança, particularmente durante um período de centralização de poder político no Brasil. A associação com Caxias foi uma maneira de simbolizar os valores e a disciplina que os líderes militares e políticos buscavam reforçar nesse momento histórico.
Patrono do Exército
Em 1962, um decreto emitido pelo governo federal oficializou Duque de Caxias como o patrono do Exército Brasileiro. No site oficial da instituição, é apresentada uma biografia que destaca sua ascensão nas patentes militares e na hierarquia nobre do século 19. Os títulos de marechal e duque foram conferidos a ele após suas atuações na Guerra da Cisplatina (1825-1828), na Balaiada (1838-1841), na Revolução Farroupilha (1835-1845), na Guerra do Paraguai (1864-1870) e em confrontos contra movimentos de independência em Minas Gerais, São Paulo e Bahia.
Caxias permanece como uma das figuras mais reverenciadas nas publicações militares. Uma pesquisa pelo termo “Caxias” na Biblioteca Digital do Exército gera 504 resultados, dos quais 476 são referentes ao período entre 2000 e 2023. Quanto ao conteúdo, as monografias mais recentes na coleção tendem a oferecer análises majoritariamente positivas. Por exemplo, um trabalho de conclusão do Curso de Oficiais Médicos elogia a “competência liderança e a habilidade de negociar” de Caxias durante os conflitos da Balaiada e da Revolução Farroupilha. Em outro texto, originado na especialização em Ciências Militares do Exército, o autor destaca que Caxias estabeleceu “um modelo de liderança que contribuiu para o sucesso brasileiro” na Guerra do Paraguai, sendo, portanto, “um paradigma a ser emulado no contexto da coesão da tropa”.
Derrubando o mito
Em 2008, a historiadora Adriana Barreto de Souza lançou o livro “Duque de Caxias: o homem por trás do monumento”. Em uma entrevista, ela esclareceu que a imagem institucional do militar é construída em torno de pelo menos dois mitos que não têm sustentação histórica. O primeiro deles diz respeito ao rigor e à disciplina normalmente associados a ele. A expressão “caxias” é frequentemente usada para descrever alguém extremamente disciplinado.
A historiadora aponta que a formação na Academia Militar no início do século 19, quando o jovem Luís Alves de Lima e Silva (futuro Duque de Caxias) frequentou, não era rigorosa e disciplinada como se acredita hoje. Era um ambiente precário e, para os padrões atuais, desprovido de militarização: funcionava como um externato, seguia regras disciplinares semelhantes às escolas civis e os alunos não utilizavam uniformes militares. A noção atual de associação entre carreira militar e a adoção de valores rígidos, aquisição de conhecimentos técnicos específicos e coesão corporativa não era aplicável ao Exército do século 19.
Outro mito abordado é o de que Caxias se mantinha afastado de questões políticas. De acordo com Adriana Barreto, essa ideia era inviável na época. As patentes superiores eram concedidas diretamente pelo monarca brasileiro e esses oficiais tinham uma ligação intrínseca com a Corte Imperial. Além disso, Caxias possuía ligações partidárias bem definidas. Ele acumulou um histórico político extenso: líder do Partido Conservador; deputado pelo Maranhão em 1841; ocupou a presidência das províncias do Maranhão (1839-1841) e do Rio Grande do Sul (1842-1846 e 1851-1852); exerceu a vice-presidência de São Paulo em 1842; foi senador vitalício pelo Rio Grande do Sul em 1845; e atuou como ministro da Guerra em 1853, 1861 e 1875.
Galeria de Racistas
Para desafiar narrativas históricas tendenciosas, o Coletivo de Historiadores Negros Teresa de Benguela criou a Galeria de Racistas. Nesse site, são listados monumentos de figuras brasileiras que foram responsáveis por cometer crimes contra a humanidade. A criação desse projeto ocorreu em resposta aos protestos desencadeados pela morte de George Floyd nos Estados Unidos, em 2020, e à remoção de uma estátua de um traficante de escravos na Inglaterra.
O Duque de Caxias foi incluído nessa galeria devido a ações violentas contra escravizados e comunidades quilombolas. Jorge Santana, membro do Coletivo de Historiadores Negros, explica que é possível considerá-lo um “herói com a estátua manchada de sangue”. Santana destaca que o comportamento de Caxias foi diferenciado em relação à Revolução Farroupilha, onde lideranças majoritariamente brancas estavam envolvidas, em comparação com a Balaiada, uma revolta envolvendo populações negras, bem como pessoas de origem indígena.
A Galeria de Racistas ressalta que o nome “Caxias” foi associado a uma cidade no Maranhão, onde a repressão liderada por ele resultou na morte de aproximadamente 10 mil pessoas durante a Balaiada.
O historiador Jorge Santana enfatiza que o racismo de Caxias se tornou mais evidente em suas interações com dois grupos distintos durante a Revolução Farroupilha. Com os líderes brancos, ele optou por negociações em vez de confrontos armados. No entanto, esse acordo levou à traição de um grupo de soldados negros que haviam se juntado à Revolução com a promessa de liberdade ao término do conflito. Um dos comandantes farroupilhas, David Canabarro, enviou a Caxias as coordenadas geográficas dos soldados conhecidos como “lanceiros negros”. No que ficou conhecido como o “Massacre dos Porongos”, pelo menos 100 desses soldados foram mortos pelo Exército.
“Ele agiu com repressão armada, mas também com estratégias de espionagem, suborno e intriga. Porque ele aprendeu que uma maneira de manter a hierarquia da sociedade não era somente por meio do açoite, mas também por meio de outras estratégias”, complementa a historiadora Camilla Fogaça.
Um novo patrono?
Seria adequado selecionar um novo patrono para o Exército, considerando que o nome de Caxias reflete um projeto político específico do início do século 20?
“O Caxias foi construído em torno de uma imagem disciplinada, hierarquizada e apolítica. É um tipo de Exército mais violento que vai ser exaltado em 1920. E agora, qual a imagem que se quer passar do Exército?”, questiona Camilla Fogaça. “Monumentos como os de Caxias emitem valores. Querer que ele continue sendo um herói e um pacificador nos termos do passado é muito problemático. Ainda mais quando a gente tem hoje assassinatos de crianças por agentes do Estado”.
“Não há dúvidas de que ele colocou suas habilidades de militar a serviço de um projeto de Brasil ultraconservador. Como chefe militar do Partido Conservador, defendeu uma monarquia assentada na escravidão”, analisa a historiadora Adriana Barreto. “Uma cultura militar que, infelizmente, persiste ainda nos nossos dias: a de um Exército que se construiu não na defesa do inimigo estrangeiro, mas na repressão a cidadãos brasileiros e a outros projetos políticos de Brasil”.
“A história é sempre feita em relação ao presente. Então, o presente olha para o passado e vê aquelas ações como erradas, criminosas e incompatíveis com a carta constitucional vigente de 1988. Portanto, para a sociedade do presente, essa figura não pode estar em um pedestal como um herói, porque o herói é um modelo que inspira a sociedade. Com uma Constituição que condena a escravidão e os crimes de guerra, ter um herói nacional como Caxias é uma contradição”, diz Jorge Santana.