O enredo que apresento é resultado de uma escuta atenta. Surge da posição de ouvinte das sabedorias ancestrais, onde as palavras guardam a memória como uma forma especial de escrita. Esta narrativa carnavalesca baseia-se na rica tradição oral, onde vozes diversas compõem um raro livro vivo.
O que compartilho aqui ouvi de ekedes, babalorixás, mogbás e ialorixás. Este relato carnavalesco é a soma de suas histórias, onde cada um adicionou algo ao que o outro não disse. Na tradição oral, “quem conta um conto aumenta um ponto”.
Nas próximas linhas, apresento o mito iorubá da visita de Oxalá, senhor de Ifón, a Xangô, narrando as travessuras de Exu e os ritos que ainda hoje são realizados no Brasil em memória dessa jornada, transformando-a em arte e desfile.
Sinopse do Enredo:
ÓMI TÚTÚ AO OLÚFON – ÁGUA FRESCA PARA O SENHOR DE IFÓN
Estamos na África, em Ifón. O som dos elefantes abre caminho para o cortejo. Homens e animais exibem marcas de efum e são adornados com pratas e marfins. A maioria veste branco. No trono, reina Oxalá, orixá funfun e pai da criação. Ele é representado por um monumento de chumbo incrustado de pedras preciosas e cauris coletados no Atlântico. Os tambores tocam em seu louvor e o chão está coberto com folhas frescas. Seus súditos esticam o alá para fazer sombra ao rei, que ergue majestoso o opaxorô.
Um dia, Oxalá decide visitar Xangô, quarto alafin de Oyó, o fogo vivo que arde no casco de um ajapá. Antes de partir, consulta o babalaô e a tábua sagrada (opom-ifá). O jogo de búzios revela um odú de desgraça e ruína. O sacerdote tenta dissuadi-lo, mas Oxalá insiste. Então, é instruído a levar três mudas de roupas brancas (aṣo fun fun) e sabão da costa (Òsè dudu), manter silêncio absoluto e cumprir qualquer pedido. Deve também oferecer um agrado a Exu, senhor dos caminhos.
Oxalá aceita tudo, menos a oferenda a Exu. Partiu para Oyó sem o ebó. Exu, porém, sabia do futuro. Sem a oferenda, Exu se pôs no caminho de Oxalá, exigindo ajuda para carregar fardos de carvão, tingindo suas vestes de preto. Oxalá se banha no rio, usa Òsè dudu e troca de roupa. Isso se repete duas vezes mais com vinho de palma e azeite de dendê, até que Oxalá não tem mais roupas brancas.
Cansado e sujo, Oxalá adormece. Exu, então, amarra um fardo de sal em suas costas. Ao acordar, Oxalá, com aparência corcunda, vê o palácio de Xangô e um cavalo branco, símbolo de amizade. Ao se aproximar, é acusado de roubo pelos guardas e preso. Mantém silêncio e é levado para o cárcere, onde permanece por sete anos.
Durante seu encarceramento, a ruína atinge Oyó. Xangô consulta um babalaô, que revela a injustiça. Xangô encontra Oxalá e, para redimi-lo, ordena que se busque água fresca para seu banho. Oxalá recupera a pureza e a prosperidade retorna. Em memória, essa água é derramada anualmente sobre o otá (pedra sagrada) de Oxalá, guardada e venerada no ilê orixá.
Em procissão, todos vestem branco e recolhem água antes do amanhecer. À noite, ekedes auxiliam os orixás, alabês tocam tambores e iabassês preparam oferendas. Oxalá, agora um otá, é banhado com águas frescas e reverenciado, perpetuando a tradição.
Enredo, pesquisa, roteiro, desenvolvimento e texto: Leandro Vieira.