O falecimento do poeta e acadêmico Antonio Cicero trouxe à tona o debate sobre eutanásia e suicídio assistido no Brasil, temas ainda envoltos em tabus morais e religiosos. Com uma sociedade resistente ao diálogo sobre o direito ao fim da vida, a discussão reacende questões sobre a dignidade no processo de morrer e a autonomia individual frente a condições de sofrimento insuportável.
Exemplos como o da jovem Carolina Arruda, que enfrenta dores crônicas intensas devido a uma rara doença neurológica, evidenciam o quanto a proibição da eutanásia no Brasil limita o acesso a uma morte assistida, atualmente viável apenas para quem possui condições financeiras para buscar alternativas em países como Suíça. Sem opções em seu próprio país, Carolina e outros pacientes necessitam arrecadar grandes quantias para arcar com os custos de um procedimento no exterior. “É muito difícil pensar em algo que vá colocar fim à vida, mas eu não vejo saída”, desabafou a jovem.
Pesquisadores em bioética apontam que o Brasil ainda não avançou no debate legislativo sobre o tema, em grande parte devido à influência de dogmas religiosos e resistências culturais. Volnei Garrafa, professor emérito da UnB, lamenta a falta de regulamentações sobre “terminalidade da vida” e defende que o tema deveria ser tratado com mais seriedade pelo Legislativo. “Isso reflete o conservadorismo do país, que exclui temas como a dignidade da morte do debate público, o que acaba penalizando as camadas mais vulneráveis da sociedade”, afirma Garrafa.
Maria Júlia Kovács, professora da USP, destaca a importância de um debate que leve em conta tanto a dignidade quanto a liberdade de escolha do indivíduo. “As escolhas de Antonio Cicero são comoventes por serem sinceras e reafirmarem sua dignidade, algo essencial para reduzir tabus sobre o tema”, explica Kovács.
Embora práticas de eutanásia e suicídio assistido permaneçam ilegais no Brasil, o crescente número de idosos e o avanço das tecnologias de suporte vital abrem caminho para uma possível revisão desse cenário. Países como Holanda, Bélgica e Suíça já permitem o suicídio assistido em situações irreversíveis e com rigorosos protocolos de avaliação. Na América Latina, a Colômbia e o Uruguai também iniciaram diálogos nesse sentido, enquanto o Canadá e partes dos Estados Unidos oferecem alguma forma de apoio à morte assistida.
O direito à autonomia no final da vida é um conceito ainda distante no Brasil, onde a cultura hospitalar e a crença na “sacralidade da vida” frequentemente afastam o diálogo sobre a morte digna. Aline Albuquerque, especialista em direito e bioética, pondera que uma eventual descriminalização requereria o preparo do sistema de saúde para atender ao público de forma responsável e segura. Para ela, a criação de um Conselho Nacional de Bioética seria um passo fundamental para assessorar o governo na formulação de regulamentações apropriadas para casos de terminalidade.
O debate sobre eutanásia no Brasil, impulsionado por histórias como a de Cicero e Carolina, destaca a necessidade de ampliar a discussão sobre a autonomia individual no processo de morrer, permitindo uma abordagem ética e digna que considere o sofrimento como um elemento central para a decisão. Para Albuquerque, a formação profissional deveria incluir questões ligadas ao fim da vida, o que evitaria procedimentos médicos sem eficácia e promoveria uma compreensão mais humanizada sobre a morte.
A pluralidade da sociedade brasileira exige que o Estado adote uma postura inclusiva e respeitosa sobre o tema, reconhecendo que o direito a uma morte digna envolve uma complexa reflexão sobre o equilíbrio entre moralidade, autonomia e compaixão para com aqueles que vivem situações de sofrimento intolerável.