Impactados pelo incêndio que, um dia antes, havia matado dez pessoas em uma pousada contratada pela prefeitura de Porto Alegre para abrigar pessoas em situação de rua, poucos deram atenção à frente fria que chegou à capital gaúcha no dia 27 de abril de 2024.
Às 7h50 daquele sábado, a Defesa Civil municipal emitiu um alerta sobre a “possibilidade de chuvas intensas e ventos fortes” entre o fim da tarde e a madrugada seguinte (28). O tom do aviso, contudo, não indicava a gravidade do que estava por vir.
“Evite transitar na rua durante esse período”, recomendava o órgão municipal no alerta compartilhado no site da prefeitura. Quase simultaneamente, a prefeitura divulgou a confirmação de uma feira de troca de livros e de um evento para adoção de animais naquela mesma tarde, além de detalhes sobre o esquema de trânsito para uma maratona com cerca de 7 mil participantes, no domingo.
“Choveu muito aqui, ontem [sábado], então há muitas poças d´água e tudo o mais”, registrou o jornalista Ruy Ferrari em um vídeo gravado pouco antes da largada da corrida no domingo. Nas imagens, é possível ver a capital coberta por nuvens.
De acordo com a MetSul Meteorologia, choveu em Porto Alegre, no sábado (27), o equivalente a 43 milímetros (mm) em apenas seis horas. Além de alagamentos e transtornos, o mau tempo afetou as operações no Aeroporto Salgado Filho. Dois aviões da Azul, provenientes de Curitiba, tiveram que pousar em Florianópolis e aguardar condições melhores para seguir viagem até Porto Alegre.
Após o primeiro alerta sobre “a possibilidade de chuva intensa”, a prefeitura de Porto Alegre voltou ao assunto na manhã de segunda-feira (29), informando que a retirada de fios e cabos de telecomunicações em desuso e a aplicação de inseticida contra mosquitos no bairro Vila Jardim foram suspensas devido ao mau tempo. Horas mais tarde, a prefeitura reconheceu a gravidade da situação, informando sobre “um aumento nas ocorrências” relacionadas a deslizamentos de solo e danos em telhados, com moradores de 12 bairros solicitando atendimentos emergenciais. A elevação do nível do Guaíba já era motivo de preocupação. Quatro dias depois, na quinta-feira (2), a prefeitura decretaria estado de calamidade pública municipal.
Interior
Antes de atingir a região metropolitana de Porto Alegre, os temporais causaram prejuízos em outras cidades gaúchas, como Sant´Ana do Livramento, no oeste do estado, e Pelotas, no extremo sul. As primeiras precipitações significativas começaram no dia 26 e se intensificaram nos dias seguintes.
No dia 27, um tornado atingiu a zona rural de São Martinho da Serra, no centro do estado, sem causar grandes danos. Em Santa Cruz do Sul, no Vale do Rio Pardo, centenas de casas foram destelhadas e o fornecimento de energia elétrica foi interrompido. A Defesa Civil municipal orientou os moradores do bairro Várzea a deixarem suas residências devido ao risco de alagamento, pois o Rio Pardinho já estava transbordando.
“Desde o dia 27, estamos passando por um período bastante difícil, afetados por um desastre natural. [Houve] queda de granizo, ventos fortes e chuva intensa”, comentou o secretário de Segurança e Mobilidade Urbana de Santa Cruz do Sul, José Joaquim Dias Barbosa. “Nossa cidade está sendo assolada por uma situação bastante grave e muito preocupante, pois continua chovendo”, acrescentou a prefeita Helena Hermany.
Primeiras Mortes
Em 30 de abril, um helicóptero da Força Aérea Brasileira (FAB) resgatou, em Candelária, a primeira de uma série de famílias ilhadas pelas enchentes. No dia 29, as duas primeiras mortes associadas às chuvas ocorreram em Paverama. Só então, o governador Eduardo Leite se pronunciou sobre a situação.
“Eu não sou o homem do tempo, mas toda vez que eu souber de notícia grave sobre o clima aqui no estado, vou compartilhar com vocês”, comentou Leite em um vídeo. “Neste momento, o alerta dá conta dessas regiões do estado, mas provavelmente, amanhã, já tenhamos a transformação disso para o grau severo para todo o estado”, acrescentou o governador.
No mesmo vídeo, ele mencionou que, até o dia 29, já havia chovido, em algumas localidades, até 200 mm. “Há a perspectiva de, até o fim da semana, chover mais 150 mm, podendo chegar a 300 mm em algumas regiões”.
Prevenção
A sucessão dos fatos levantou uma questão: por que os órgãos responsáveis não foram capazes de alertar a população, em tempo hábil, sobre a real dimensão do perigo? Se já em 25 de abril, a Defesa Civil do Rio Grande do Sul identificou que temporais trariam risco de alagamentos, ventos fortes e transbordamento de cursos d´água, por que só a partir do início de maio, quando a infraestrutura de algumas cidades já tinha sido comprometida, os alertas ganharam a necessária ênfase?
Em entrevistas publicadas pela Agência Brasil em 15 de maio, especialistas foram unânimes ao sustentar que, com treinamento adequado, é possível ao menos minimizar as consequências dos fenômenos climáticos.
“Não temos uma Defesa Civil eficiente. Ela está desestruturada, com dificuldades, mal aparelhada, sucateada. E sem mecanismos de alerta. Além disso, a população tem problemas de acesso às informações de prevenção”, disse o geólogo Rualdo Menegat, professor da UFRGS.
“As defesas civis de alguns municípios têm uma ou duas pessoas. Poucos têm uma Defesa Civil consolidada. E a população precisa de treinamento para saber se defender”, comentou o engenheiro civil e professor da PUC-RS, Jaime Federici Gomes. “Imaginemos o exemplo do Japão, que lida com furacões, terremotos e maremotos, e tem toda uma estrutura para conviver com esses eventos extremos. Precisamos aprender a nos defender, a lidar com essas situações e fazer as adaptações estruturais”, completou Gomes.
Alarme
No início da tarde do dia 30, o governador Eduardo Leite voltou a fazer uma transmissão, reconhecendo que, em vários municípios, a situação já era “preocupante”. Ele conversou com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que assegurou que o governo federal enviaria ajuda ao estado e aos municípios gaúchos.
No mesmo dia, a Defesa Civil emitiu um alerta recomendando que as prefeituras adotassem seus “planos de contingência, implementando os abrigos públicos e realizando a retirada das pessoas que vivem nas margens dos rios”. Moradores de áreas de risco de seis cidades (São Francisco de Paula, Canela, Gramado, Nova Petrópolis, Vale Real e Feliz) deviam buscar locais seguros.
No dia 1 de maio, o governo do Rio Grande do Sul decretou estado de calamidade pública. O estado já contabilizava ao menos dez mortos e 21 desaparecidos. Leite reconhecia que a destruição prenunciava o “maior desastre da história” gaúcha em termos de prejuízo material.
O governador negou ter demorado a agir para alertar e evacuar a população. Em entrevista à BBC Brasil, em 17 de maio, ele afirmou que as providências foram tomadas à medida que se verificava sua necessidade. E reiterou que no dia 29 pediu pela primeira vez para as pessoas saírem das áreas de risco.
Questionada sobre a demora do governo estadual e das prefeituras em recomendar que os moradores de áreas de risco deixassem suas residências, a Defesa Civil estadual não havia respondido até a publicação desta reportagem. De acordo com o mais recente boletim do órgão, ao menos 169 pessoas perderam a vida e mais de 2,34 milhões de gaúchos foram afetados em um dos 473 municípios atingidos. Há ainda 44 pessoas desaparecidas e pelo menos 39.595 desabrigadas em todo o estado.