“De que tipo de visibilidade estamos falando?”, questiona a psicóloga Jaqueline Gomes de Jesus, uma mulher trans negra, sobre o tipo de visibilidade necessária. No Dia da Visibilidade Trans, a pesquisadora da ENSP/Fiocruz alerta que a transfobia e a violência são realidades que precisam ser expostas, mas que a promoção da saúde mental requer estimular a visão da sociedade e da população trans sobre si mesma, além da denúncia de riscos iminentes de violência, falta de acesso ao trabalho e baixa expectativa de vida.
“No Brasil, a visibilidade trans tem sido muito pautada a partir de dados de violência letal. As pessoas muitas vezes conhecem a realidade da população trans somente por essa lente do ‘somos do país que mais mata pessoas trans no mundo’, em termos absolutos. Essa é a imagem que fica”, afirma a pesquisadora, que avalia que isso impacta a política pública e a produção de conhecimento sobre a população trans.
“Geralmente, as políticas públicas e como se pensa a população trans se reduzem a dados como esses, ou dados sobre a precariedade laboral. Eles são fatos. Mas o que significa só reproduzir esses fatos?”
O enfoque único na população trans como vítima de violência e exclusão tem um efeito negativo significativo na saúde mental,” afirma Jaqueline Gomes de Jesus, psicóloga e presidente da Associação Brasileira de Estudos da Trans-Homocultura. Além disso, ela é professora de psicologia no IFRJ e coordena no Brasil o estudo global SMILE, que analisa a saúde mental de minorias sexuais e de gênero em países de renda baixa e média, incluindo o Brasil, Quênia e Vietnã.
“Essas notícias constantes de violência e de assassinato e da limitação da expectativa de vida das pessoas trans, principalmente entre os jovens, isso tem um impacto direto na suicidabilidade, na exposição ao risco, e também em outros fatores como ansiedade”, explica. “É importante que criemos condições para que a população trans seja vista e também se veja de forma mais positiva, com expectativa de sair dessa condição de exposição ao risco de violência e de transfobia. E não apenas que seja visível nessa condição”, defende.
Jaqueline Gomes de Jesus enfatiza que a mudança de enfoque não deve ocultar a realidade de violência contra pessoas trans, mas reconhecê-las em sua diversidade e potencial, permitindo sua visibilidade de outras formas.
“É ter a realidade como um dado, mas criar condições de visibilidade para que as pessoas trans possam se ver em lugares potentes, transformadores, e possam ocupar esses lugares e ser vistas na sociedade nesses lugares. É isso que vai criar saúde mental para a população trans na nossa cultura.”
Ela destaca que a mudança de enfoque na visibilidade trans requer condições reais de acesso da população trans a áreas como comunicação, Justiça, saúde e outras, como profissionais e produtoras de conhecimento, e não apenas como usuárias. Ela defende ações positivas de contratação de pessoas trans no setor público e privado, além do acesso a locais de formação e produção de conhecimento.
“Quantas pessoas trans temos na imprensa e nos meios de comunicação de forma geral produzindo conteúdo enquanto jornalista? Enquanto comunicadores? Estamos criando ações afirmativas para termos mais pesquisadores e pesquisadoras trans? Nossos juízes, advogados e médicos são pessoas trans também? É preciso um salto além.”
O 29 de janeiro foi escolhido como o Dia da Visibilidade Trans por ser a data de uma importante mobilização realizada em 2004 na Câmara dos Deputados. Na época, a campanha “Travesti e Respeito” levou a um histórico ato de pessoas trans no Congresso Nacional, cuja pauta principal era a promoção da saúde.
Depressão e ansiedade
A pesquisa identifica a transfobia como um fator que agrava transtornos mentais como estresse pós-traumático, depressão, ansiedade e suicídio na população LGBTQIA+. Através da pesquisa em diferentes países, ela percebe que a realidade é variada, mas em todos, transtornos mentais já prevalentes são intensificados na população trans.
“Na população trans, a gente vê altas taxas de suicidabilidade, com idealização, planejamento e até execução de casos de suicídio principalmente entre homens trans, e, particularmente, negros. E isso converge que no Brasil também são os homens negros os que mais tentam se matar. Há convergências em termos de gênero e de contextos culturais.”
O grupo de pesquisa liderado por Jaqueline Gomes de Jesus, com duração de 5 anos, visa gerar provas para terapias alinhadas à população LGBTQIA+. A meta é identificar problemas de saúde mental exclusivos dessa população e apresentar novas soluções.
“Falta muito tratamento em saúde mental baseado nos dados de cada cultura para questões como depressão, tristeza, ansiedade, alcoolismo e várias questões que afetam a população LGBT. E aí a gente tira os dados para poder pensar em cada grupo pormenorizado.”
Fortalecimento
Durante a pandemia da COVID-19, a saúde mental de muitos grupos populacionais foi afetada, e Marcelle Esteves, psicóloga e coordenadora de saúde do Grupo Arco-Íris, viu de perto as dores específicas da população trans. A organização sem fins lucrativos ofereceu assistência psicológica a 2.530 pessoas, incluindo 884 pessoas trans, durante a pandemia.
“Foram momentos em que só quem estava olhando de frente e pôde ouvir sabe a dor de muitas pessoas trans que inclusive precisaram voltar para os espaços de onde já tinham saído, voltar às suas famílias. E muitas pessoas precisaram se descontruir enquanto trans para poder permanecer nesses espaços e ter comida e onde morar. Foi um período violento.”
A psicóloga, uma mulher negra e cisgênero, descreve o “novo normal” a que a sociedade voltou depois dos períodos mais agudos da pandemia como um “velho anormal”. “Não sei para quem é novo. Para a população LGBT, pra população preta, não tem nada de novo. Nada do que essas populações passaram na pandemia foi novo para eles. Eles já passavam isso, mas vivenciaram num grau hard“, diz ela. “A gente ainda vê e vai ver durante um tempo as sequelas desse período em que muitas pessoas vivenciaram a solidão.”
Marcelle Esteves percebe uma ligação completa entre a visibilidade trans e a melhoria da saúde mental, principalmente após a pandemia. Segundo a psicóloga, a visibilidade é também uma forma de reforço mental para uma população frequentemente sem suporte familiar e enfrentando discriminação em ambientes como escolares.
“Dar visibilidade interseccional à população trans é também dar garantia de um processo de saúde como um todo e de cidadania plena para essa população”, diz. “Se eu não me vejo, eu não me reconheço. Seu processo de identificação e reconhecimento é parte de como você se olha no mundo, de como você se percebe e percebe que tem outras pessoas iguais a você. Se eu não me vejo e não me reconheço, eu não existo, eu não estou. Ainda falta visibilidade no sentido do pertencimento.”